“Levo comigo o que aprendi em casa e na favela”
Lays dos Santos, 19 anos, viajou para Johanesburgo para participar do lançamento do Manifesto Jovem #EndViolence. Pisou pela primeira vez em solo africano. Na verdade, foi a primeira vez que saiu do Brasil. “É a realização de um sonho”.

Nascida no Rio de Janeiro, Lays dos Santos cresceu na favela do Palmeirinha, onde vive até hoje com sua mãe, seu pai e três irmãos. Mora na mesma casa da sua infância, da qual as brincadeiras são a lembrança mais forte. “Vivíamos brincando na rua. No fim de semana, a escola ficava fechada e como não havia nenhum parquinho ou campinho por perto, pulávamos o muro da escola para jogar bola na quadra”. Para Lays e seus irmãos, o maior castigo era ficar em casa sem poder brincar na rua. “O portão de nossa casa tinha um buraco de bala, algum tiro perdido, e ficávamos olhando pelo buraco os amiguinhos brincando”, lembra sorrindo.
A parte difícil de ser criança foi superar o desrespeito que, desde cedo, sentiu de outras pessoas, principalmente na escola. Como menina negra, com “cabelo mais cheio, mais gordinha”, Lays logo percebeu comentários e olhares preconceituosos. “Nessa hora, minha mãe me ajudou a entender que não havia nada de errado comigo. Ela sempre disse que eu era responsável por minha vida”.
Auxiliar de serviços gerais, a mãe, nascida no Rio, se casou jovem com o pai, vindo da Paraíba. “Quando era criança, tínhamos muito pouco. Mas, com trabalho suado, conseguimos comprar nossa casa própria dentro da favela”, conta Lays. Ela lembra de seu pai trabalhando como motorista de ônibus todos os dias, incluindo os finais de semana. “Mas, nas folgas, ele estava presente. Nesses poucos momentos, ele era tudo”.
Com a força transmitida por sua mãe e seu pai, Lays continuou firme na escola. Em especial, seus olhos brilhavam pela biblioteca. Além dos livros, encontrou professores marcantes, que apresentaram novos mundos. Foi uma professora que levou Lays pela primeira vez ao cinema, aos 10 anos. Depois foram ao museu e outros lugares no centro da cidade. “Ela levava a gente para fora da comunidade”.
Mas, ao mesmo tempo em que abria novas janelas, a escola foi se transformando em um espaço de insegurança. Desde pequena, Lays estudou em diferentes escolas públicas na região. “Minha mãe nunca deixou eu ir sozinha para a aula, pois havia uso de drogas e até mesmo casos de violência sexual nos arredores da escola”. Na verdade, ao chegar na escola, logo de manhã, era vez de Lays ficar preocupada de sua mãe voltar sozinha para casa.

Durante a adolescência, o contexto da violência foi se revelando mais claramente. Ora a escola fechava, ora era um vizinho chorando pela perda violenta de alguém querido. As lembranças são recentes. A escola de ensino médio onde estudou até 2017 muitas vezes ficou no meio do fogo cruzado entre duas facções do tráfico. Uma vez, invadiram a escola para se esconder e guardar armamentos. “Começou o tiroteio e todos os alunos correram para os banheiros, o local mais protegido. Mas já havia tanta gente que tivemos que correr para o pátio”, lembra Lays.
Nessa época, Lays se deparou com a história de outros jovens que marcaram fortemente suas escolhas. O sonho de seu pai era que ela fosse oficial da Marinha. Começou então o curso onde conheceu um jovem, cujo o pai era traficante de drogas e estava conquistando uma história diferente. “Ele dizia que a maior rebeldia contra o sistema era o conhecimento e que sua libertação eram os livros”. Um dia, Lays recebeu a notícia que seu amigo havia sido raptado e morto pela facção inimiga do pai. “Decidi continuar por ele e fui descobrindo que outros também estavam morrendo”.
Ao assistir uma intervenção teatral dentro da favela sobre preconceito, nasceu a ideia, com seu irmão Rian, de mobilizarem outros jovens e adolescentes para falarem sobre sua realidade. Assim, surgiu o projeto “Eu Vivo Favela”. A proposta era criar um espaço de diálogo e mobilização, que reuniu cerca de 25 adolescentes ao longo de 2017. Ao precisar trabalhar e começar a estudar à noite, muitos integrantes do grupo começaram a se dispersar.
A própria Lays tomou novos rumos. Em meados de 2017, se inscreveu no projeto RAP da Saúde, da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, tornando-se parte dessa rede de jovens promotores de saúde nas comunidades. “Com o RAP, vi uma luz no fim do túnel: outros jovens estavam se organizando e queriam mudanças como eu”.

Como integrante do RAP, Lays chegou também às atividades da Plataforma dos Centros Urbanos – iniciativa do UNICEF para promover os direitos de cada criança e cada adolescente em 10 capitais brasileiras, incluindo o Rio de Janeiro. Em novembro de 2017, participou de uma roda de conversa sobre prevenção da violência contra adolescentes durante a celebração do Dia Mundial da Criança, dentro do Ministério Público do Rio de Janeiro. Ali, mais uma porta se abriu: Lays foi convidada a ser parte da equipe da Assessoria de Direitos Humanos e Minorias do MP.
Ao mesmo tempo, a jovem iniciou a faculdade de Serviço Social. “Apesar do sonho de meu pai de eu ser marinheira, ganhou a minha mãe, que sempre me ensinou muito sobre ajudar as pessoas”, brinca ela. Lays conta que, dentro da favela, “logo aprendeu que, para a vida funcionar, a gente tem que se ajudar: dar roupa, dar comida, cuidar do filho do outro”. O seu sonho é criar uma organização que possa apoiar mulheres com seus filhos em situação vulnerável. “As mães sentem que vão perder os seus filhos e, se nessa hora, elas tiverem apoio, elas podem mudar a história”, explica.

Junto com o trabalho e o estudo, Lays ainda arruma tempo para participar da discussão sobre o impacto da violência na vida dos adolescentes, especialmente nas favelas. A jovem esteve presente em muitas das ações realizadas pelo UNICEF no Rio de Janeiro. Entre elas, as conversas com candidatos ao governo durante a campanha Mais Que Promessas, e a uma roda de conversas ligadas à iniciativa global #EndViolence, voltada ao fim da violência contra crianças e adolescentes. Nesses diálogos, Lays percebeu cada vez mais que o desafio da violência não é só dos adolescentes do Rio, muito menos do Brasil.
Por isso, ela está tão orgulhosa de sua primeira viagem internacional. Foi convidada pelo UNICEF a participar da produção de um manifesto sobre o fim da violência e o direito de ir à escola durante Conferência Africana da Juventude em Johanesburgo, na África do Sul. O manifesto será lido durante o Festival Mandela 2018, no dia 2 de dezembro. “Quando contei para meu avô, pai de meu pai, que mora no interior da Paraíba, ele chorou pelo telefone. Estão todos orgulhosos”. Mas Lays logo lembra do que a sua mãe sempre repetia quando ela começou a conquistar outros espaços: “Você tem que ir, mas leva com você o que aprendeu em casa e na favela”. Vai, Lays, vai!
Rio de Janeiro, novembro de 2018