“Quero uma cidade que garanta nosso direito de viver”

Morador da periferia do Rio de Janeiro, Gelson Henrique participa da Conferência Global sobre Cidades Amigas da Criança, na Alemanha, e leva a certeza de que cada adolescente precisa ter sua vida respeitada e oportunidades de conquistar a cidade

UNICEF Brasil
jovem olha sorrindo para a câmera. atrás dele, a cidade.
UNICEF/BRZ/Rafael Duarte
16 outubro 2019

“Comecei a ler com 4 anos de idade. Meu pai e minha mãe sempre me incentivaram a aprender mais e mais”, lembra Gelson Henrique, hoje aos 20 anos. Filho de pai carioca e mãe baiana, Gelson cresceu ao lado de quatro irmãos no bairro de Campo Grande, na periferia oeste da cidade do Rio de Janeiro.

Sua mãe fez curso técnico em contabilidade e seu pai, que trabalhava como motorista de caminhão de lixo, só teve oportunidade de voltar ao ensino médio no ano passado. Mesmo assim, os dois sempre encorajaram os filhos a seguir os estudos e conquistar uma profissão. “Meus irmãos mais velhos conseguiram entrar na faculdade, mas eu fui o primeiro a conseguir matrícula numa universidade pública”, orgulha-se Gelson. Ele está no terceiro ano da faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em Seropédica, na Baixada Fluminense.

Infância na periferia – Quando menino, Gelson sempre estudou na escola pública do seu bairro. Ele se lembra de ir a pé para a escola durante todo o ensino fundamental. Ele cresceu brincando na rua com as outras crianças. “Havia uma praça no nosso bairro – o que não é muito comum nas periferias – e essa praça fez toda a diferença em nossa vida”. E continua: “Tivemos uma infância pobre. Eu e meu irmão levávamos dois biscoitos cada um para o lanche da escola. Mas nunca passamos fome em casa. Tenho uma lembrança feliz de criança”.

Mas, durante a adolescência, Gelson começou a perceber as barreiras de ser um menino negro, de escola pública, de periferia. “Percebi um mundo desigual, percebi o racismo à brasileira, que impede a gente de sonhar com outros lugares”, conta Gelson. Percebeu que não teve o direito de viver a cidade. Nunca soube, por exemplo, o que era um museu. Não era algo ao alcance de uma família pobre, que vivia na periferia. 

“Descobri que há toda uma estrutura que não quer que a gente ascenda. Mas também percebi que não existo sozinho. A pele preta traz toda uma ancestralidade”

E Gelson decidiu ir abraçando as oportunidades de enfrentar tudo isso.

Vontade de saber mais – Ainda na escola, despertou para a vontade de saber mais. Sempre interessado em novidades, inscreveu-se para um estágio na Fundação da Infância e Adolescência (FIA) do governo estadual. Entre outros projetos, participou da DHTV – um laboratório de produção audiovisual com adolescentes. Bateu na porta da diretoria para poder participar de encontros do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente. Conheceu a Plataforma dos Centros Urbanos, iniciativa do UNICEF, cuja uma das estratégias é fortalecer a participação dos adolescentes para promover os direitos de cada criança e cada adolescente, especialmente os mais afetados pelas desigualdades dentro das cidades.

Quando terminou a escola, pensou em arrumar emprego em alguma loja, mas sabia que, se começasse nesse tipo de emprego, não conseguiria sair. E ele queria algo mais. Seus pais ficaram desempregados e a situação apertou. Teve então a chance de atuar no projeto “Na Pista TV” – ele mobilizava jovens que haviam passado pelo sistema socioeducativo para participar da iniciativa.

Muitas barreiras – Gelson nunca pensou que conseguiria chegar a uma universidade pública. “Fazem a gente acreditar que a universidade pública não pertence a nós, jovens, negros, das favelas e periferias”, afirma Gelson. “Quando vi o meu nome, não acreditei. Passei graças à política afirmativa de garantir oportunidade a alunos negros, de baixa renda, vindos da escola pública”. Gelson  tem orgulho de ser quotista. Tem certeza de que a política de quotas está mudando a história.

Depois de conquistar uma vaga, chegou a hora de superar outros desafios. Não é fácil estudar durante o dia, sem ter chance de trabalhar. “Muitas vezes, penso em desistir, pois preciso começar a me sustentar e ajudar em casa”. Ir e voltar todo dia para a faculdade é outra barreira. Demorando quase duas horas para chegar ao campus, o jeito foi batalhar uma vaga no alojamento da universidade para economizar tempo e dinheiro da passagem. Hoje, Gelson fica de segunda a sexta no campus e volta para casa no final de semana.

Com o curso de Ciências Sociais, Gelson quer se preparar cada vez mais para participar do debate das políticas públicas e da importância da participação dos jovens e adolescentes nessa discussão.

Em 2018, Gelson e outros quatro amigos criaram o projeto Ci-Joga – um dos finalistas do Geração que Transforma – iniciativa global do UNICEF que visa alavancar soluções criadas por jovens. O projeto recebeu então um recurso-semente para dar vida à ideia. Organizaram grupos focais com alunos, familiares, equipe escolar para discutir o projeto e fizeram atividades na escola para fomentar a participação política de mais jovens e adolescentes. “O mais importante foi confirmar que a participação de adolescentes é urgente”, resume Gelson, que agora sonha em levar a proposta para mais escolas e outros bairros da cidade.

Direito de viver – É com essa vivência que Gelson embarcou, a convite do UNICEF, para a Conferência sobre as Cidades Amigas da Criança, que será realizada em Colônia, na Alemanha, de 15 a 18 de outubro de 2019. Junto com outros jovens e adolescentes do mundo, Gelson vai discutir como as cidades precisam se transformar para garantir o desenvolvimento pleno de cada criança, cada adolescente.

“Para mim, cidade amiga da criança é uma cidade que não viole nossos direitos, começando pelo direito à vida, que hoje está ameaçado para um jovem negro”

Gelson não hesita em dizer que a desigualdade mais gritante de sua cidade é saber que os adolescentes e jovens negros, pobres, são as grandes vítimas de homicídio. Em todo Brasil, 32 meninos e meninas são assassinados por dia – segundo estimativa do UNICEF, a partir de dados oficiais de 2017. “Essa estatística fala de mim, dos meus amigos e precisamos mudar isso”.