Cavar para sobreviver – Como as pessoas enfrentam a seca no Cunene
O Cunene vive uma luta pela água no meio do que muitos consideram a pior seca da história. Todos os dias, a população das áreas rurais gasta horas para ter o que beber, cozinhar e dar aos animais.

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Ondjiva, Angola – A região sul de Angola vive uma situação de emergência que piora rapidamente. Mais de 2,3 milhões de pessoas são afectadas pela seca nas províncias do Namibe, Huíla, Bié e Cunene – 491 mil são crianças com menos de 5 anos.
A última chuva, que deveria garantir a colheita e o pasto dos animais este ano – e, portanto, a sobrevivência da maioria da população – foi escassa ou quase inexistente no primeiro trimestre. Resultado: apenas no Cunene, a insegurança alimentar passou a atingir 857 mil pessoas desde Março, contra 250 mil em Janeiro.
O UNICEF corre contra o tempo para apoiar o Governo na resposta à crise, que tem tido um impacto severo na população, em particular as crianças – a maioria envolvida nas exaustivas e longas jornadas para conseguir água. Conheça alguns dos rostos que estão a lutar pelo líquido todos os dias.

Para Ndahambela Simon, 10 anos, encontrar água por baixo da terra é uma actividade diária partilhada com a mãe e os sete irmãos, na localidade de Oluveia, comuna de Naulila, município de Ombadja. Mas o que mais preocupa a mãe da menina, Helena Mwambangue, é a alimentação. Este ano não houve colheita, e as reservas de grãos do ano passado já estão a acabar. Em vários pontos do Cunene, a quantidade de chuva registada entre Janeiro e Março – tradicionalmente parte da estação de chuva – não chegou a 50 mililitros por metro quadrado, o que caracteriza uma seca extrema.

Onde muitos só veem um campo preto cercado por um deserto, os mais de quatro mil habitantes da localidade de Oliafiluwa, também na comuna de Naulila, enxergam a sobrevivência. É do leito da antiga chimpaca, que secou em maio – mês em deveria estar cheia, caso houvesse chovido – que eles retiram o que bebem e usam para cozinhar. Aqui, cada família tem o seu próprio poço, que não costuma passar dos 3 metros de profundidade.

“Aqui, ou se luta pela água ou não se bebe nem come”, diz Ana Leonilde, 24 anos. No dia da foto, após passar mais de três horas a cavar este poço, as paredes argilosas caíram e o mesmo ficou desfeito. Isso a obrigou a começar a escavar novamente, sozinha, para conseguir água para si e os dois filhos, incluindo um bebé de um ano. “A água é ruim e salobra”, ela diz.

Na maioria dos casos, cabe às crianças, às mulheres e aos idosos a tarefa de conseguir água para a família e cuidar da casa e dos animais menores, como cabritos e galinhas. Como o gado é a principal riqueza das famílias da região, os homens partem durante o período de seca no fenómeno conhecido como transumância – a migração dos pastores com o gado em busca de água e bons pastos, para a sobrevivência do rebanho.

Uma mulher bebe água após encerrar o trabalho de escavação, que levou toda a manhã, na localidade de Oliafiluwa, na comuna de Naulila.
Quem vê a destreza e o bom humor do jovem Tchirinho Vataleni, 18 anos, pode não acreditar que ele passa 4h todos os dias num buraco profundo, escuro e frio. A sua família divide o poço de mais de 15 metros de profundidade com outras cinco famílias, próximo à comuna de Ombala-Yo-Mungo, no município de Ombadja. A tarefa de Tchirinho é retirar incontáveis baldes de água e terra, que são puxados por dois colegas (veja o vídeo abaixo). Para descer até o fundo, o jovem usa apenas as mãos – não há qualquer equipamento de segurança. E, para ele, também não há escola. Chegou a completar a sétima classe, mas diante da seca que começou cedo e lhe impõe uma intensa carga, o jovem abandonou os estudos.
Enquanto o jovem Tchirinho está no fundo, Jackson Dinihambo, 32 anos, e Verdiana Amália Satona, 23, apoiam com a retirada dos baldes, alternados entre terra e água. O vídeo mostra a quantidade de terra retirada desde o início da escavação, há quatro meses. O trabalho intenso dura mais de 7h, mas nem sempre rende o esperado: nos dias ruins, cada uma das seis famílias que divide o poço leva apenas um balde de 20 litros para todos os seus membros. Um agregado chega a ter 12 pessoas sob o mesmo teto.

O professor Lino Adelino é a prova dos perigos a que estão expostos Tchirinho e todos os que cavam poços. O desabamento de terra numa manhã do mês de Maio deixou-o com uma fractura no braço. Após mais de dois meses internado, o professor da Escola Primária de Ondobodhola, na comuna de Naulila, regressou à sua casa em meados de Julho, mas não sabe se poderá voltar a trabalhar na plantação, na criação de animais ou na busca da água. Tampouco há muito o que fazer: das sete porcas que a família tinha, hoje restam uma. A colheita desse ano, que deveria ter sido feita em Junho, não ocorreu. “É a pior seca que já afectou a província”, diz a sua mulher, Solástica Timóteo.

Lourenço Inadudi, 12 anos, é um dos rapazes que acompanha o pai na transumância. Em anos normais, isso significaria ficar longe da mãe e dos irmãos – e da escola – de dois a três meses. Mas com a seca deste ano, Lourenço e o pai tiveram de deixar a casa bem mais cedo para garantir a sobrevivência do gado. A previsão actual é que fiquem 7 meses sem ver a família. E o regresso não é certo: depende da chuva, esperada para Novembro. Na altura da foto, o jovem estava a viver provisoriamente próximo ao município sede de Cuvelai. Matriculado na segunda classe, está com cinco anos de atraso escolar.

Em várias localidades onde as cacimbas são usadas por longos períodos e partilhadas, normalmente, por mais de uma família, é comum haver uma tampa, trancada com cadeado, a proteger o bem mais precioso da província.

Aos 14 anos, Naime Cekupe, a jovem de camisola laranja na foto, está na 6ª classe e quer ser professora. Mas o seu sonho e de outras milhares de crianças estão ameaçados pela seca prolongada que assola a região Sul de Angola. Isso porque a sua presença na sala de aulas obedece à sede dos animais. Dia sim, dia não, a rapariga e a irmã Launa Hambelezeni, à esquerda na imagem, levam os cabritos para beber água. Precisam caminhar 1h30 no escuro até chegar à cacimba da família, com o sol ainda a raiar. Lá, passam pelo menos 5 horas a colectar água antes de enfrentar o caminho de regresso. Nesses dias, não vão à escola.

As aulas de educação física na escola dirigida por Rogério Kakoi foram canceladas porque as actividades deixavam as crianças com sede e não havia água. Para o director, não há dúvidas que o rendimento das crianças diminuiu. Rogério lamenta ainda as consequências da falta de água para a conhecida hospitalidade do povo do Cunene. Segundo o director, agora é comum receber visitas em casa com uma pergunta. “Vai querer comer ou vai querer beber?”, afirma, com tristeza. “Não dá mais para oferecer os dois”.

Próximo à sede da comuna de Ombala-Yo-Mungo, a seca traz outros desafios para as famílias além do esforço de cavar poços. Muitas vezes, as fontes de água estão distantes de casa. Isso leva meninas como Onyevetu Laitia, 11 anos, e Marta Ndimaoshitya, 12, a caminhar durante mais de uma hora com baldes de 20 litros sobre as cabeças.

Nas localidades onde ainda há água disponível nas chimpacas, como em Tyipelongo, município da Cahama, a pouca água que resta é consumida rapidamente pelas famílias e animais como porcos, cabritos e burros.

Para aqueles que não acreditam, o sr. Pedro Henrique Kassesso não hesita: pega logo o bilhete de identidade e mostra a data de nascimento: 1907. Hoje com 113 anos, Pedro é reconhecido pela Administração Municipal de Ombadja como a pessoa mais velha no município. A coordenadora do seu bairro, Sra. Alexandrina Cândida, 58, confirma a sua idade. A história e as mãos do Sr. Pedro se confundem com a de Xangongo, sede do município, onde ajudou a construir as obras mais importantes. Lembra o ano e o engenheiro chefe da cada uma. A boa memória permite-lhe dizer com certeza: “esta é a pior seca que já vi”. E completa, com base na experiência adquirida ao longo de décadas na região: “A água é o patrão do mundo”.
O UNICEF está a apoiar o Governo de Angola na resposta à crise, através da abordagem de “centros amigos da criança” — uma ênfase em visar as comunidades mais vulneráveis por meio da convergência de serviços integrados em saúde, nutrição, água, saneamento e protecção da criança, numa mesma localidade.
Está em andamento o fornecimento de 30 tanques de água com capacidade para 5.000 litros. Os tanques serão colocados em locais estratégicos nas comunidades afectadas pela seca, nas províncias do Cunene, para reduzir as distâncias que as comunidades percorrem para ter acesso à água, que por sua vez será fornecida através do transporte por camiões-cisternas como parte da resposta dos Governos Provinciais do Cunene e da Huíla.
A componente nutricional e de água, saneamento e higiene das intervenções financiadas pelo Fundo Central de Resposta a Emergências das Nações Unidas (CERF) estão a ser lideradas pelo UNICEF, com um número estimado de 341.565 crianças a serem atendidas, incluindo 96.000 mulheres pela nutrição, em todas as quatro províncias afectadas pela emergência e cerca de 135,000 pessoas assistidas pelas intervenções no sector de água e saneamento.
Um primeiro carregamento de cerca de 12 toneladas de leite terapêutico para crianças com malnutrição severa, entre outros suprimentos, também foi entregue ao Governo Provincial do Cunene e da Huíla em Julho, incluindo comprimidos para a purificação de água.
Em Abril, o Governo de Angola anunciou que reservaria 200 milhões de dólares para a construção de grandes obras de engenharia hidráulica, incluindo duas barragens e canais adutores de água. Estas obras, de longo prazo, devem ser acompanhadas por um fortalecimento urgente da resposta no terreno. Sem água, com a produção agrícola inexistente e os animais ameaçados – o número de cabeças de gado mortos com a seca passa de 26 mil – o perigo para a sobrevivência das pessoas é real, com perspectiva de intensificação da crise nos próximos meses.