“Minha missão é cuidar, sinto os yanomamis como se fossem o meu próprio povo”
Em meio à emergência nacional em saúde pública, a nutricionista Nara Martins, que é indígena macuxi, atua no cuidado e acolhimento de crianças yanomamis com desnutrição em Roraima

Quem vê a sintonia entre Nara Martins, de 25 anos, e seus pequenos pacientes nem desconfia que eles não falam o mesmo idioma. A jovem nutricionista, que é indígena, usa outros tipos de linguagem para acalmar as crianças yanomamis que vêm de suas terras, a centenas de quilômetros de distância, para ser tratadas da desnutrição em Boa Vista, Roraima. A comunicação se dá por afeto, olhares, abraços e sorrisos.
“Como mulher indígena da etnia macuxi, eu me sinto muito privilegiada de exercer a minha profissão para cuidar de pessoas como eu. Sinto-me na missão de cuidar desses pequenos, porque eu os vejo como se fossem meu próprio povo. Essa é a minha luta”, afirma Nara, que tem hoje o dever de enfrentar a desnutrição infantil no Centro de Recuperação Nutricional da Casa de Saúde Indígena (Casai) Yanomami. É para a Casai, situada na capital de Roraima, que são levadas as pessoas com as condições mais graves de saúde que vivem na Terra Indígena Yanomami (TIY), mas não podem ser tratadas lá.
Desde 20 de janeiro, o Brasil vive uma Emergência em Saúde Pública, declarada pelo Ministério da Saúde diante da grave situação dos povos que vivem no Território Yanomami, que registra aumento nos casos de desnutrição e malária. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) trabalha em conjunto com o Governo Brasileiro e parceiros, no Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE-Yanomami), o mecanismo de gestão da resposta.
O trabalho de Nara e outras dezenas de profissionais de saúde que atuam na Casai já rendeu frutos: dados do Ministério da Saúde de fevereiro mostram que cerca de três em cada quatro crianças com desnutrição aguda grave conseguiu evoluir para o quadro moderado da doença.

“É sobre ser humano e colocar em prática o amor ao próximo. Aqui estou vivendo em um contexto completamente diferente de tudo o que já vivi, porque lido com um povo do qual não conheço a língua, nem a cultura”, afirma Nara, para quem um dos pontos mais desafiadores foi a construção conjunta de um protocolo padrão de atendimento, devido às especificidades culturais e de alimentação envolvendo a população yanomami. Para isso, o Grupo de Trabalho de Nutrição do Centro de Emergência realizou adaptações ao Manual de Atendimento da Criança com Desnutrição Grave em Nível Hospitalar, do Ministério da Saúde.
Impedir que mais crianças yanomamis percam a vida para a desnutrição é uma tarefa que Nara não leva sozinha: o tratamento depende de uma rotina intensa de acompanhamento por monitores de saúde e nutrição. A alimentação terapêutica assistida é realizada cinco vezes ao dia nos dias iniciais do tratamento, e as crianças são pesadas e avaliadas clinicamente todos os dias.
Nascida e criada na comunidade indígena da Barata, em Roraima, e filha de uma mãe indígena refugiada da Guiana, Nara criou consciência desde cedo sobre os problemas enfrentados pelos povos indígenas. Segundo ela, as demandas de saúde nas comunidades são, na maioria das vezes, resolvidas por médicos ou enfermeiros, havendo poucos nutricionistas nas comunidades mais afastadas, o que a motivou a estudar nutrição. Nesse sentido, poder apoiar a resposta yanomami é motivo de orgulho.

Implementada com a Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (Adra), a resposta do UNICEF à emergência yanomami é possível graças à contribuição da União Europeia, por meio do Departamento de Proteção Civil e Ajuda Humanitária (Echo, na sigla em inglês).
Território ameaçado
Mais de 30 anos após ser declarada oficialmente como território indígena em 1992, a Terra Indígena Yanomami – a maior do País, com 9,6 milhões de hectares entre os estados de Amazonas e Roraima – enfrenta uma crise humanitária devido ao aumento significativo da atividade de garimpo e extração ilegal de madeira, que levou a registro de violências dos invasores contra a população indígena, bem como surtos de doenças e aumento da mortalidade infantil.
Estima-se que 20 mil garimpeiros chegaram a ocupar o território onde vivem 31 mil indígenas de 376 grupos, alguns ainda em isolamento voluntário. Desde a declaração de emergência e diante da ação coordenada pelo Governo Federal, os garimpeiros começaram a deixar a terra indígena.
Mas os desafios, incluindo a invasão do território, continuam.
“Nenhuma criança yanomami deve ser privada do acesso a saúde, nutrição, água, saneamento e higiene. Por isso, a resposta do UNICEF, que está sendo implementada com apoio da União Europeia e sob a liderança do Governo Federal, por meio de mecanismos nacionais e locais de gestão, foca primeiramente em intervenções que salvam vidas, mas também vai fortalecer necessidades do sistema a longo prazo”, afirma o coordenador de Emergências do UNICEF no Brasil, Gregory Bulit.
Em 2019, o UNICEF divulgou os dados da Pesquisa sobre os determinantes sociais da desnutrição de crianças indígenas de até 5 anos de idade em oito aldeias inseridas no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Yanomami. Segundo o estudo, oito em cada dez crianças menores de 5 anos apresentam desnutrição crônica, em dois polos-base pesquisados.