Crianças fora da escola: o enorme impacto da seca para a educação no Cunene

Quando as crianças têm de se dividir entre buscar água e proteger a maior riqueza das suas famílias, os animais, a educação é seriamente comprometida

Marco Prates
Os rapazes Festus Fikifengue, 15 anos, Lourenço Inadudi, 12 anos, e Cahumba, 10 anos, estão a acompanhar os respectivos pais durante o fenómeno de migração dos pastores com o gado em busca de água e bons pastos, na província do Cunene.
UNICEF Angola/2019/Carlos Louzada
01 Outubro 2019

Ondjiva, Angola - A previsão é que neste ano os rapazes Festus Fikifengue, 15 anos, Lourenço Inadudi, 12 anos, e Cahumba, 10 anos, fiquem até 7 meses longe de casa sem ver a mãe, os irmãos e os amigos. Os três estão a acompanhar os respectivos pais na transumância, fenómeno de migração dos pastores com o gado em busca de água e bons pastos – dois itens que desaparecem da maior parte da província do Cunene na época da seca.

Se fosse um ano normal, Festus, Lourenço e Cahumba ficariam longe de casa no máximo três meses. Mas a seca extrema que afecta actualmente o sul de Angola - e considerada pelos locais a pior em décadas - obrigou os meninos e os seus pais a antecipar a partida em vários meses.

Como eles, mais de 2,3 milhões de pessoas em quatro províncias do país estão a enfrentar a insegurança alimentar, quase meio milhão das quais são crianças menores de 5 anos.

Os três amigos vivem agora provisoriamente próximo ao município sede de Cuvelai, e só regressarão à casa se voltar a chover, no fim do ano. Mas nada é mais incerto.

“Sinto falta da minha mãe”, reconhece Lourenço, que aos 12 anos frequenta a 2ª classe – um atraso de 5 anos escolares. O mesmo acontece com os dois amigos.

A dificuldade imposta pela transumância para o acesso à educação no Cunene – sobretudo para os meninos – é há muito conhecida. Mas a seca sem precedentes que assola a região sul intensificou o fenómeno, causando um stresse inédito no sistema de ensino da província.

No município de Curoca, um dos mais afectados pela seca, 13 escolas fecharam desde o começo do ano devido ao abandono dos alunos.

Das 887 escolas primárias da província, 614 estão de alguma forma afectadas pela seca – causando transtornos graves para nada menos do que 70% dos 214 mil estudantes da província.

Mas a migração imposta para a sobrevivência do gado – a maior riqueza das pessoas na região – está longe de ser a única barreira a manter as crianças longe da escola.

A sede dos animais

Diferentemente dos três amigos, as irmãs Naime Cekupe, 14 anos, e Launa Hambelezeni, 15 anos, ainda estão matriculadas na escola. Mas vão a apenas à 50% das aulas: com o pai fora a levar o gado em busca de água e comida, as jovens devem cuidar dos cabritos da família. E esses animais bebem dia sim, dia não.

As irmãs Naime Cekupe, 14 anos, e Launa Hambelezeni, 15 anos, buscam água junto com a mãe, Foibe Uwaopeni, 29 anos, na comuna de Ombala-Yo-Mungo, província do Cunene
UNICEF Angola/2019/Carlos Louzada
As irmãs Naime e Launa, à esquerda, juntas da mãe Foibe: um dia dedicado a buscar água para os animais; o outro, à escola.

A cada dois dias, portanto, as duas levantam-se quando ainda está escuro, às 4:30, para vencer a caminhada de uma hora e meia até o poço de água da família.

“Preciso da ajuda das duas no dia de alimentar os animais. Nos outros dias, venho sozinha”, conta a mãe Foibe Uwaopeni, 29 anos.

As duas jovens passam horas a tirar água do poço, até por volta de 11h, e depois caminham de regresso à casa, carregando cada uma um balde de 20 litros. Portanto, não vão, à escola.

Infelizmente, a rotina delas assemelha-se a de milhares de crianças na região, que percorrem longas distâncias em busca de água.

“Tenho alunos que se levantam uma hora da manhã para levar os animais para beber água, e voltam para casa às 5 horas da manhã”, conta o director da Escola Primária de Ondobodhola, Rogério Kakoi.

“Na escola já não têm energia nem assimilam o conteúdo”, diz o director. A escola já perdeu 20% dos alunos matriculados no início do ano e as aulas de educação física foram canceladas.

Falta de água

Há ainda outras razões que explicam o abandono escolar.

Para a família de Marta Ndimaoshitya, 12 anos, o impacto da seca tem sido severo. A menina alterna-se com outros seis irmãos na caminhada diária de uma hora para acompanhar o pai na busca da água.

Nos dias ruins, a dupla regressa com apenas um balde de 20 litros para o consumo de todos da casa, 12 pessoas – uma média de menos de dois litros para cada um, divididos entre o preparo da comida e bebida.

Na 3ª classe do ensino primário, Marta mantém-se na escola, que é próxima de casa. Mas três dos seus irmãos já abandonaram os estudos: precisariam de mais água para vencerem a caminhada de ida e volta até a escola, no município sede de Ombala-Yo-Mungo.

Resposta

O UNICEF está a apoiar o Governo de Angola e o Governo Provincial do Cunene na resposta à seca, que atinge outras províncias no sul do país como o Namibe, a Huíla e o Bié. 

O suporte baseia-se na entrega de serviços integrados nas áreas de água e saneamento, saúde, nutrição e protecção da criança. Na educação, as intervenções do UNICEF beneficiarão em torno de duas mil crianças em 15 escolas, que vão operar como escolas “Porto Seguro”, que fornecem um pacote de outros serviços, incluindo nutrição. Além disso, haverá a busca por alunos fora do sistema de ensino nessas comunidades e a doação de materiais escolares, incluindo tendas.

Quinhentas crianças vão ser beneficiadas ainda com o projecto de educação comunitária pré-escolar “Todos Unidos pela Primeira Infância” (TUPPI).

Contudo, o financiamento da componente de Educação em emergências do UNICEF permanece insuficiente face aos desafios enfrentados por 150 mil alunos no Cunene. A medida que os efeitos da seca se tornam ainda mais severos nas próximas semanas e meses, sem o devido fortalecimento das intervenções no terreno, existe a possibilidade de que mais crianças sejam privadas do direito de aceder à uma educação de qualidade.

Marta Ndimaoshitya, 12 anos, alterna-se com outros seis irmãos na caminhada diária de uma hora para acompanhar o pai na busca da água, no município sede de Ombala-Yo-Mungo, província do Cunene.
UNICEF Angola/2019/Carlos Louzada
Marta Ndimaoshitya, de 12 anos: dos seus seis irmãos, três já não vão à escola, pois não há água para que possam vencer a longa caminhada.